Deixar o Velho Oeste para trás: Domar os criptoativos e pôr em ação o blockchain

14 de dezembro de 2023

(Texto preparado)

Annyeong haseyo!

Havia um bom tempo que eu esperava visitar a Coreia como Diretora-Geral do FMI. É com imenso prazer que estou aqui presente para participar das importantes discussões sobre moedas digitais que ocorrerão durante esta conferência. Agradeço ao Vice‑Primeiro‑Ministro Choo, ao Vice-Presidente Kim da Comissão de Serviços Financeiros e ao meu querido amigo Chang Yong, Governador do Banco da Coreia, com quem trabalhei em estreita colaboração no FMI.

Como nos velhos tempos, quando convidados chegavam de terras distantes e se reuniam em torno de uma grande fogueira, gostaria de contar uma história.

É uma história sobre o passado, o futuro e o presente. É uma história de inovadores e infratores, de riscos e oportunidades. É a história dos criptoativos e da blockchain.

O passado

A história começa num cenário que se assemelha ao árido Velho Oeste americano.

A maioria dos criptoativos que surgiu no setor financeiro tinha “pouco” ou “nenhum” lastro em ativos. Não tinha qualquer valor intrínseco e sofria com a volatilidade dos preços. Alguns desses criptoativos entraram em colapso porque dependiam de reservas instáveis.

Os criptoativos eram realmente ativos de risco — muitas famílias guardam sequelas que provam essa afirmação. Elas perderam dinheiro de verdade. Muito dinheiro.

O Velho Oeste era um lugar difícil. Havia poucos xerifes por perto, a legislação e a regulamentação eram limitadas. Era uma terra propensa a atividades criminosas e incidentes desastrosos. A lavagem de dinheiro e outras atividades ilícitas terão movimentado dezenas de bilhões de dólares por ano.

Só no mês passado, o fundador da Binance, a maior corretora de criptomoedas do mundo, se declarou culpado diante de acusações de lavagem de dinheiro. Poucos dias antes, o fundador da FTX, uma importante corretora que faliu, ter sido condenado por fraude e outros crimes.

Em poucas palavras, nos últimos 15 anos, o setor de criptoativos não construiu uma reputação gloriosa. E ele tampouco está livre de problemas.

O futuro

O que o futuro lhe reserva?

Precisamos primeiro considerar os efeitos caso os criptoativos se tornem predominantes. Esse cenário é possível.

Por um lado, os criptoativos não vão desaparecer. A Bitcoin está sendo negociada no valor mais alto desde abril de 2022. A capitalização do mercado de criptomoedas dobrou no último ano. E hoje em dia, as pessoas pesquisam a palavra “Bitcoin” cerca de vinte vezes mais do que “saúde e bem-estar” e sete vezes mais do que “mudança climática”.

Além disso, a adoção de criptoativos é alta, sobretudo em economias de mercados emergentes, como Índia, Nigéria e Vietnã, de acordo com a Chainalysis, embora os dados sejam escassos. No Brasil, de cada 100 reais gastos em títulos estrangeiros, 25 reais vão para criptoativos, segundo um estudo que está sendo feito pelo corpo técnico do FMI.

O desafio é que a adoção dos criptoativos em larga escala poderia prejudicar a estabilidade macrofinanceira.

Por um lado, a criptoização, isto é, o uso de uma criptomoeda em vez da moeda nacional, pode prejudicar a transmissão da política monetária, conforme demonstrado em um recente estudo do corpo técnico do FMI. Qual é a utilidade de aumentar as taxas de juros sobre uma moeda que poucas pessoas têm?

Além disso, seria possível contornar medidas de gestão do fluxo de capitais, como a limitação de haveres em moeda estrangeira.

E os criptoativos poderiam prejudicar a sustentabilidade fiscal se a arrecadação se tornasse volátil ou se fosse mais difícil cobrar impostos.

Esse é um futuro que todos nós queremos evitar.

O presente

Para evitar que esse futuro se torne realidade, sugiro que voltemos ao presente, passando do Velho Oeste para o Leste Asiático, para aprender com as ricas tradições da Coreia.

Eu me inspiro no Hangul. Para os que são de fora, como eu, trata-se do sistema de escrita do idioma coreano adotado no século XV pelo rei Sejong. Sua estrutura simples substituiu um sistema de escrita ineficiente, acessível apenas às elites. Dos escritos antigos aos smartphones, o Hangul demonstrou ser incrivelmente adaptável, além de ser lindo.

O Hangul é o bem público perfeito, com regras claras para construir sílabas e palavras e uma infraestrutura mínima, porém sólida: um alfabeto de 24 letras.

É semelhante ao que estamos tentando alcançar hoje em dia. Nosso objetivo é criar um sistema financeiro mais eficiente, acessível e interoperável, estabelecendo regras para evitar os riscos associados aos criptoativos, e uma infraestrutura que aproveite algumas de suas tecnologias. Vamos olhar cada um desses pontos.

Regras para os criptoativos

Após discussões esclarecedoras com os países membros, o FMI e o Conselho de Estabilidade Financeira publicaram um relatório em setembro último, contendo orientações sobre regras para os criptoativos.

Entre os principais elementos, figuravam: não transformar criptoativos em moeda oficial ou de curso legal; esclarecer leis, normas e regulamentos e aplicá-los de maneira uniforme, inclusive ao combate à lavagem de dinheiro e ao financiamento do terrorismo; estipular regras tributárias claras; constituir uma base legal sólida com uma classificação clara dos criptoativos; e coordenar as políticas em âmbito mundial para evitar a arbitragem regulatória, já que os fornecedores de criptoativos podem mudar de jurisdição com o clique de um botão.

Os países estão implementando essas orientações, transformando-as em leis, capacitando supervisores e superintendentes, e reforçando a fiscalização. A Coreia, por exemplo, assumiu um papel de liderança ao alterar sua lei sobre o combate à lavagem de dinheiro e ao estabelecer uma nova legislação sobre criptoativos. O Conselho de Estabilidade Financeira e o FMI estão ajudando os países membros em todas essas frentes — e estamos prontos para fazer ainda mais.

Essas regras não têm como objetivo nos levar de volta a um mundo anterior aos criptoativos nem acabar com a inovação. Nem tudo que cerca os criptoativos foi manchado por fraudes, assim como o Velho Oeste não era feito só de bandidos, apesar de suas lendárias façanhas.

A exploração da infraestrutura pelo setor privado

Boas regras podem estimular e nortear a inovação. Por exemplo, os bancos estão explorando uma nova infraestrutura comercial baseada na tecnologia blockchain, que foi aperfeiçoada e popularizada pelo boom dos criptoativos. Eles esperam cortar custos e aumentar a velocidade das transações diárias de ativos que movimentam trilhões de dólares, bem como ampliar o acesso financeiro para aqueles que atualmente se contentam com contas de depósito de baixa rentabilidade.

Atualmente, os bancos criam um ativo em papel, depositam-no em um agente de custódia e fazem uma reconciliação com os intermediários para verificar quem é o proprietário do quê. Funciona, mas é um processo dispendioso. Em vez disso, imagine criar o ativo como uma entrada, ou “token”, em uma blockchain e negociá-lo atualizando a blockchain.

O potencial de ganhos poderia ser grande: a blockchain pode ser acessada por todas as partes envolvidas na transação, é transparente e à prova de adulteração. Além disso, a liquidação é rápida. Os ativos financeiros na forma de token também podem ser divididos em partes para atender a investidores menores. E as transações podem ser automatizadas e agrupadas de modo a ocorrerem simultaneamente. Isso reduz o risco de falha das contrapartes ou das negociações antes que um ativo chegue ao seu legítimo proprietário.

Vi isso com meus próprios olhos no mês passado, em testes feitos por bancos no âmbito do Projeto Guardião da Autoridade Monetária de Singapura.

Para deixar claro, muitas barreiras ainda precisam ser vencidas para passar dos testes à produção, como o estabelecimento de quadros jurídicos adequados.

A infraestrutura pública

Embora não seja possível prever a adoção, precisamos estar preparados. É essencial planejar a infraestrutura certa.

É aí que entra o setor público, para assegurar que essa infraestrutura atenda aos objetivos das políticas públicas.

As blockchains que acabei de descrever terão de ser baratas, estáveis e confiáveis. Precisarão assegurar a interoperabilidade entre os ativos e os contratos para negociá-los. Exigirão dinheiro seguro que também esteja na cadeia — as moedas digitais dos bancos centrais — para pagar pelos ativos. E a conformidade com as normas internacionais, como as referentes ao combate à lavagem de dinheiro e ao financiamento do terrorismo, será primordial, além da coerência com as prioridades da política econômica dos países, como a gestão dos fluxos de capitais.

Não por coincidência, isso se parece com as plataformas que descrevi no Festival Fintech de Singapura — as praças virtuais que facilitam as transações. Lá, me detive em como as plataformas favorecem a interoperabilidade das moedas, enquanto hoje estamos discutindo a interoperabilidade dos ativos. Afinal de contas, o dinheiro é um contrato financeiro — um certificado de dívida — como qualquer outro ativo. Quer nosso desejo seja consertar os pagamentos internacionais ou zelar pela eficiência e estabilidade das transações de ativos, acabamos chegando ao mesmo lugar.

Conclusão

As regras e a infraestrutura podem muito bem ser as consoantes e as vogais do sistema monetário internacional do futuro. Elas precisam ter tanta sensatez e perspicácia quanto o Hangul! 

O grande filósofo e homem público coreano Yulgok disse: “Se você praticar com todas as suas forças, conseguirá alcançar a eficiência e, então, obter resultados.” É o que vamos fazer. Gamsa-hamnida!

Departamento de Comunicação do FMI
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